domingo, 20 de fevereiro de 2011

Laboratórios suspendem fabricação de remédios sem lucro

 

As empresas têm o direito, garantido por lei, de pedir o fim da licença para a produção de qualquer medicamento.
Vamos mostrar um problema quase desconhecido, mas muito importante: a falta de remédios para doenças raras. Como o mercado é pequeno e o lucro é baixo, os laboratórios simplesmente interrompem a fabricação. E os doentes sofrem. 

João Gabriel recebe peças e brinca na salinha de um hospital de Porto Alegre. Ele tem quatro anos. Desde dezembro, faz quimioterapia. João tem leucemia linfóide aguda, um tipo de câncer que prejudica a formação do sangue e atinge, a cada ano, duas mil crianças e adolescentes no Brasil.

“A gente tem índices de cura hoje, se for tudo bem feito, de 80%”, afirma Cláudio Castro Júnior, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica. Mas o tratamento do João Gabriel e de outras crianças foi interrompido por que o remédio está em falta. Chama-se asparaginase e não tem substituto. “Tirando esse remédio, nós estamos diminuindo esse índice de cura”, alerta o médico. 

João deveria receber nove doses do remédio, mas tomou oito e o medicamento acabou. A interrupção pode causar uma recaída. 

“Eu espero que a gente não precise voltar para o início do tratamento, porque eu sei o quanto isso pode prejudicar a saúde dele”, diz Lenen de Oliveira, mãe de João Gabriel. 

Ao longo de um mês de apuração, o Fantástico descobriu 13 hospitais públicos em todo o país onde a asparaginase está em falta. 

“A Anvisa nos orientou a entrar em contato diretamente com o laboratório que fabricava o medicamento, esse laboratório nos fornece um número de telefone para que a gente efetue a compra e esse número de telefone não atende”, conta Graça Jacob, diretora do Hospital Ophir Loyola, de Belém. 

Por e-mail, o laboratório Bagó, que fabrica a asparaginase, negou a interrupção no fornecimento, mas a avaliação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que fiscaliza os laboratórios, é de que houve sim “pendência na fabricação do produto no Brasil”, tanto que autorizou o Bagó a fazer uma importação de emergência. 

E a asparaginase não é o único remédio para leucemia que está em falta na rede pública. Há seis meses, Caio, de 17 anos, faz quimioterapia em um hospital de Barretos, no interior de São Paulo, que atende pelo SUS. O tratamento estava quase no fim, quando surgiu uma preocupação inesperada: “Há algum risco de a doença voltar”, diz o menino. 

É que falta um remédio chamado tioguanina. Há três meses, muitos pacientes na situação do Caio não recebem essa medicação, usada na fase final do tratamento. 

“A gente não sabe o que pode acontecer com o paciente ficando sem a medicação, mesmo depois voltando à medicação. Nesse período sem a droga, ele pode apresentar recaída”, afirma a oncopediatra Érica Boldrini. 

Para o presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica, a tioguanina e a asparaginase sumiram pelo mesmo motivo. 

“São medicações já de uso muito restrito, que têm a patente vencida, tem um custo relativamente baixo e tem uma população de pacientes muito pequena. Então, do ponto de vista de mercado, é muito complicado para um laboratório ou produzir ou importar isso aí e ter uma margem de lucro adequada”, observa o Dr. Cláudio. 

O laboratório GSK, que comercializa a tioguanina, admite o desabastecimento, mas diz que é temporário, causado pela mudança no fornecedor de matéria-prima. Pacientes com outras doenças também estão enfrentando dificuldades para seguir o tratamento indicado. Remédios baratos, receitados para poucos compradores, estão sumindo de farmácias e hospitais. 

Maria da Penha Duarte tem artrite reumatóide, uma doença incurável nas articulações. Os sintomas, que são muito dolorosos, mas podem ser controlados com uma substância chamada metotrexato. Dona Penha usou o remédio durante 14 anos. Há dois meses, não encontra mais. Esse tipo de artrite afeta 900 mil pessoas no país. Nem todas estão em tratamento, nem todas tomam o remédio. Resultado: o mercado é muito pequeno. 

“Isso para o comércio de maneira geral, inclusive porque é uma medicação barata, torna o metotrexato uma medicação pouco interessante para quem comercializa medicamentos”, explica Geraldo Pinheiro, o presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia. 

Nos últimos seis anos, três laboratórios abandonaram a fabricação do remédio. Existe um substituto, mas é 15 vezes mais caro. “Tem dia que eu não posso fazer as coisas. Quero ver minha casa limpinha e não consigo levantar o braço para limpar em cima do armário”, lamenta dona Penha. 

Outra doença que tem sido abandonada pelos laboratórios é a hipertensão crônica, que atinge 5% dos brasileiros que sofrem de pressão alta. Dona Nilza Mainardi é um deles e precisa tomar diariamente o remédio minoxidil. “Eu fiquei dez dias na CTI por causa da falta do remédio, que fez a minha pressão subir demais”, conta. 

O motivo apontado pelos médicos para a falta do remédio é o mesmo. “Acredito que não gere lucro e não seja um grande incentivo para as empresas que produzem”, aponta o nefrologista Renato Eick. 

O laboratório Pfizer, que fabricava o minoxidil para pressão alta, disse que suspendeu a produção temporariamente por problemas na fábrica. Pedir o fim da licença de fabricação de qualquer produto é um direito garantido por lei aos laboratórios. 

“Não se pode pensar em medicamentos e diagnóstico como se pensa em móvel e tijolo. Saúde é uma situação estratégica e é um compromisso social”, afirma Raymundo Paraná, presidente da Sociedade Brasileira de Hepatologia. 

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